sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Um rio, um fio de memória…


Antologia de textos durienses - Tomo II ISBN: 972-99089-7-4 Autor: Vários II Cristina Correia [et al.] Ano de edição: 2004 Editora: Garça Editores - Edições, Marketing e Publicidade, Lda


Um rio, um fio de memória…
Trinta e sete anos haviam decorrido desde o ano de 1869, em que Chardron projectara, no Porto, um majestoso espaço, dedicando-o ao seu rei - o Douro. (...)
Das janelas da galeria, o velho sábio conseguia ver as pontes D. Maria e D. Luís sobre o rio. Como sempre, Chardron recordava tudo o que ainda podia conter na sua memória - os afectos. A água, o bálsamo da saudade e o divino rio. Os rochedos, a verdura, os marcos de granito, as cepas, as pipas de vinho enfeitadas de louro, os barcos rabelos. A beleza inigualável das paisagens, o fruto doce e doirado dos vinhedos, a cor ametista do vinho, a gastronomia, o pão de sêmea, o vinho de Tormes, a alegria franca e a hospitalidade dos homens de Barqueiros. As festas, as rogas, a sega dos fenos, o cancioneiro. As pequenas flores pálidas e a sua velha amiga, agora fragilizada, Marguerite. Uma alma simples de simpática aparência. Padecia de uma doença respiratória e debilitava-se ano após ano. As suas palavras serenavam-no, via-a como uma mãe, com candura. (...)
No período de férias passeavam juntos. Escolhiam percursos históricos. Apreciavam a caminhada desde a Porta do Sol até à Porta da Vila, observando minuciosamente as ruínas, o escasso casario e uma réstia do plantio de amoreiras que por entre aquelas vielas do Castelo de Lamego renasciam. Procuravam a frescura das águas, a vegetação, os ciprestes junto à casa da Quinta, no Tua. Os miradouros, os recantos arqueológicos, os vinhedos encorpados por uma gestação generosa. Gostavam de vestir os trajes típicos do Douro. Este tempo habilitava-os a um novo crescimento interior, numa simbiose entre a terra e o homem.(...)
Quando se encontravam, durante o ano, Marguerite cultora das ciências históricas ajudava-o a traduzir os velhos manuscritos caligrafados em papel velino. Organizavam tertúlias e nelas dialogavam com paixão sobre as bases culturais de uma nação, invocando de uma forma concisa as suas ideologias em relação ao perigo do feudalismo industrial, onde os valores da humanidade são subestimados. Neste contexto apelavam para o perigo do aparecimento da ambição e da inveja, vírus das futuras sociedades. Conversavam sobre a conservação dos arquivos de alguns periódicos que foram publicados em 1869: o Diário do Povo, a Revista Crítica de Literatura Moderna; a Voz do Douro e a Gazeta Democrática, esta em 1870, entre outros semanários portuenses. (…) Cristina Correia.
in Vozes do Douro Antologia de textos durienses - Tomo II, 2004.