quarta-feira, 9 de maio de 2012

A avozinha Eva

A avozinha Eva


Ao nascer o dia, na aldeia da Eva, as flores acordaram radiantes e apressaram-se em pintar os olhos. Ali, no cimo do monte, as flores silvestres coabitam felizes e eternas. 
A uma escassa meia dúzia de quilómetros depara-se-nos a aldeia do Mundo que se estende por vastos terrenos constituídos por vales e várzeas. É a aldeia da Eva.
O sol vestido com a sua farda dourada desceu à aldeia pela estrada do cimo do monte. Pelo caminho beijou cada flor e ao aproximar-se da casa da Eva, espreitou pela janela entreaberta e disse:
– Bom dia! Passei só para te abraçar! Hoje combinei com a chuva estar pouco tempo convosco, pois as flores do monte precisam de água. A chuva chega à tarde.
A avozinha Eva agradeceu ao amigo sol. Também ela não sabia como dar de beber às flores do monte! Ficou feliz pelo gesto de solidariedade.
Nessa hora da manhã, na casa da avozinha Eva, só a princesa Bolota lhe fazia companhia. A princesa Bolota gosta de se enroscar nas almofadas e rebolar sobre os livros espalhados na mesa grande da sala. Por vezes, dorme debaixo de uma prateleira com livros para não ouvir o tiquetaque do relógio de parede.
Da janela da sala, Eva conseguia avistar deslumbrantes paisagens. Ao fundo da aldeia, planícies de milho e trigo pairavam sob um lençol dourado. E, no cume da montanha, tudo crepitava, rochas e rochedos íngremes, flores e nuvens.
Entre velhos manuscritos caligrafados em folhas de papel velino, Eva vai enxergando os vultos das letras e os desenhos a carvão que sua mãe lhe deixara. As folhas já soltas, envolvidas por um xaile, no interior da arca, vêm reconstituir um lugar no tempo da sua íntima emoção. A toalha branca bordada, o âmbar e a cidreira repousam junto dos poemas de sua mãe. Sozinha, junto à mesa grande da sala, vai examinando as estampas, as escassas fotografias da família, dos amigos e os livros amontoados nos móveis da casa de pedra. Como sempre, Eva recorda tudo o que ainda podia conter na sua memória - os afectos. A água do rio Tuela - o bálsamo da saudade - e a beleza inigualável das paisagens. A verdura, os marcos de granito, as pequenas flores do pátio, as flores silvestres do monte e a sua fiel amiga, a gata Bolota. Uma alma simples de simpática aparência. As suas palavras serenavam-na, via-a como uma familiar, com candura. Gostavam muito de passear perto da aldeia, ver o campo, ouvir os pássaros e sentarem-se junto à margem do rio. Apreciavam as caminhadas pela aldeia, observando minuciosamente as ruínas, o escasso casario e uma réstia do plantio de amoreiras que por entre aquelas vielas velhas renasciam.
Eva deixa-se inspirar pelo ronronar da sua gata Bolota, confiante, elegante, de patas aveludadas, pêlo curto preto e brilhante, com uns olhos cor de âmbar misteriosos. No deslizar dos dias, juntas pintam a óleo, na tela grande pousada no chão da sala, as flores do monte da aldeia. As tintas misturam-se com os pincéis, com as patas aveludadas da Bolota, com as mãos trémulas da avozinha e juntas com as cores mágicas desenham o Botão de ouro, os Tomelos, a Fumária e a Viotela brava. São as flores silvestres!
Na casa de pedra da avozinha Eva existia um pátio, onde os amores-perfeitos, a trepadeira de lilases e as rosas despontavam luzes, cores e odores celestes todas as madrugadas. O velho caracol Noé habitava-o. No inverno, conservava-se a maior parte do tempo dentro da concha, em silêncio. Na primavera, quando o tempo quente chegava o Noé passeava-se no pátio, rastejando e apalpando sempre as superfícies com os seus quatro tentáculos. Assim, observava as rotinas da avozinha Eva e da princesa Bolota. Com o seu dente, o caracol Noé alimentava-se, destacando os pequenos fragmentos das folhas tenras, dos gomos e dos rebentos novos das flores do pátio.
O dia já vai longo e a princesa Bolota escutava o vento. Abeirou-se da janela entreaberta e soprava uma aragem fria que se precipitava em ziguezague contra o seu rosto triangular. O vento sacudia as folhas do castanheiro que vivia junto ao portão da casa de pedra da Eva, lançando sobre a terra as sementes… «Cada árvore é única na sua textura, cor, cheiro, folhas, flores e frutos, não tem frente e nem costas, crescem para todos os lados e continuamente, querendo abraçar e acolher todos que chegam à sua volta. Ela nos fornece alimento, ar, sombra e muitos materiais, com os quais podemos desenvolver incontáveis produtos aplicando nossa sabedoria e criatividade. Está sempre presente – como um símbolo maior, marcante e sábio. Acompanham nossas histórias, gerações após gerações, nunca se fazendo indiferente à presença do ser humano, ao contrário, sempre nos dando muito do que necessitamos. Porém, com o tempo, nós passamos simplesmente a tirar o que precisamos, sem medir as consequências do que deixaríamos para o futuro. As mais variadas religiões e culturas sempre valorizaram sua presença como ser vegetal de presença análoga à do Homem. Desde pequenos sentimos e experimentamos as árvores em nossas vidas, mesmo que de uma forma inconsciente… Mas com a vida moderna das grandes cidades, nos transformamos em pessoas individualistas e fragmentadas criando uma cisão no nosso contacto com a natureza. A essência da beleza humana está protegida dentro da nossa alma, assim como uma semente que a árvore gera para se multiplicar. Todo nosso potencial e valores estão dentro dessa semente que temos que cuidar alegremente, dando condições para esses valores tão belos brotarem, crescerem e inspirarem…» Juliana Gatti. Eram as sementes do castanheiro! Sementes de renovação e de íntimo aperfeiçoamento da natureza, cogitava a gata! A princesa Bolota pouco se importava com o tempo. Havia no vento uma liberdade e uma mensagem poética que, embora lhe despenteasse o pêlo, eram bem-vindas. Naquele instante, ventanias de aromas povoam todas as casas de pedra da aldeia do Mundo. Pelas ruas as gentes caminham apressadamente, fugindo do vento cortante e frio. Nas telhas da casa e nas vidraças das janelas ressoam os pingos robustos da chuva. O tempo augura um bom negócio para o vendedor de chapéus-de-chuva, pensa a gata! As nuvens do monte escurecem e o céu recebe a luz trovejante. Começou a chover, como tinha anunciado o sol, pela manhã. Pensativa, a gata Bolota fecha a janela e salta para a poltrona azul. De seguida dirige-se à prateleira com livros, arrasta o volume O pão dos outros e atraída pelo cheiro do pão que Eva acabara de retirar do forno a lenha, a princesa Bolota entra na cozinha com a cauda esticada na vertical, com as orelhas erguidas como um par de pirâmides sobre o rosto molhado, esfregando o corpo nas pernas da avozinha Eva, enquanto lhe recorda a hora de ler uma história.
Cá fora, sobre as pedras, num canto do pátio, o velho caracol Noé com os seus movimentos muito lentos recolhe-se da chuva que cai amiudadamente, deixando a marca de uma baba gomosa, esbranquiçada. Abriga-se na sua grande concha e com os seus dois olhos observa a chuva e pensa: «Está na hora do silêncio. O silêncio, um fio invisível que liga um ser vivo a outro. O silêncio das estradas da paz na busca da verdade do mundo. O silêncio da natureza que não distingue entre os eleitos e a todos por igual protege e incita. O silêncio da tolerância, dos julgados e dos que julgam. O silêncio fraternal de aprender e de guiar.»
Algum tempo passou, e a noite apressou-se a chegar à aldeia. A chuva prolongava-se pela madrugada. Entre dois nacos de pão, um caldo feijão, uma malga de água e dois bolos de cenoura, as habitantes da casa de pedra acendem a lareira com um fogo quente que depois há-de servir para aquecer as longas horas do serão. A avozinha Eva senta-se na poltrona azul com o livro escolhido pela princesa Bolota e lê, em voz alta, a história O pão dos outros [de Michèle Lochak, Le pain des autres. Paris, Flammarion, 1980]: 
«Remi está a conversar com a avó.
Gosta de a ouvir falar dos seus tempos de menina.
– Na minha aldeia, na Provença, pelo Ano Novo, no primeiro dia de Janeiro, toda a gente oferecia uma prenda a toda a gente. Vê lá se és capaz de adivinhar o que seria.
Remi lança palpites:
– Comprar prendas para a aldeia inteira… É preciso muito dinheiro. Quer dizer que as pessoas eram ricas?
A avó riu-se:
– Oh, não! Naquele tempo, tinha-se muito pouco dinheiro e ninguém na aldeia comprava prendas. Nem sequer havia lojas como há hoje.
– Então faziam as prendas?
– Não propriamente!
– Então como é que faziam?
– Era muito simples. Ora ouve…
Antigamente, cada família fazia o seu pão. Não havia água corrente nas casas. Então íamos buscá-la à fonte, no largo da aldeia. E, no dia um de Janeiro, de manhã muito cedo, a primeira pessoa que saía de casa, colocava um pão fresco no bordo da fonte, enquanto enchia a bilha de água. Quem chegava a seguir pegava no pão e punha outro no mesmo lugar para a pessoa seguinte, e assim por diante… Desta forma, em todas as casas, se comia um pão fresco oferecido por outra pessoa. Nem sempre se sabia por quem, mas garanto-te que o pão nos parecia muito bom porque era como se fosse um presente de amizade. As pessoas que estavam zangadas pensavam que talvez estivessem a comer o pão do seu inimigo e isso era uma espécie de reconciliação…
Durante alguns dias, esta história andou a martelar na cabeça de Remi.
Uma manhã, teve uma ideia. Meteu no bolso uma fatia de pão de lavrador. É o pão que se come na casa de Remi. E na escola, um pouco antes do recreio, Remi pousou o pão bem à vista, em cima da carteira de Filipe, o seu vizinho.
Filipe está sempre com fome e repete sem cessar a Remi:
– Oh! Que fome, que fome eu tenho! Bem comia agora qualquer coisa!
Quando Filipe viu a fatia de pão, que rica surpresa! Sabia muito bem quem lha tinha dado, mas fingiu que não sabia.
No recreio, todo contente, comeu o pão sem dizer nada a Remi, mas… No dia seguinte, sabem o que é que Remi encontrou em cima da carteira, mesmo antes do recreio? … Um pedaço de cacete! Um grande pedaço bem estaladiço! Um verdadeiro regalo!
Filipe ria-se.
E assim continuaram a dar um ao outro presentes de pão.
Na aula, a Carlota e a Sílvia estão sentadas logo atrás de Filipe e de Remi. Rapidamente souberam da história do pão e quiseram também participar nas surpresas. No dia seguinte, Sílvia levou uma fatia de cacetinho e Carlota uma fatia de pão centeio.
Outras crianças quiseram participar nas prendas de pão. Apareceu pão grosseiro, pão de noz, pão de sêmea, pão sem côdea, pão caseiro, pão fino, pão russo, negro e um pouco ácido, que Vladimir levou, pedaços de pão árabe, que a mãe de Ahmed cozera no forno, e ainda muitos outros tipos de pão. Desta forma, quase toda a turma se pôs a trocar pedaços de pão durante o recreio.
A professora apercebeu-se das trocas e perguntou:
– Mas o que é que vocês estão aí a fazer?
Carlota e Remi contaram-lhe toda a história do pão dos outros.
E logo após o recreio, o que é que estava em cima da secretária da professora? …um pedaço de pão!
Toda a classe tinha os olhos postos na professora. Ela sorriu e comeu o pão.
E, no domingo seguinte, quando Remi viu a avó, era ele que tinha uma história para lhe contar:
– Sabes, avó? Olha, na minha turma…».
A avozinha Eva lia a história, olhava para os olhos cor de âmbar misteriosos da sua amiga princesa Bolota e, por vezes, lembrava-se da sua avó. A gata Bolota esfregava o corpo nas pernas da avozinha Eva e murmurava baixinho palavras de ternura e amor, enquanto ouvia a história. Por fim, a gata adormeceu, tranquilamente, sem dar conta do tiquetaque do relógio de parede. 
Na manhã seguinte, a princesa Bolota sorriu para a sua amiga Eva e disse-lhe:
– Querida amiga Eva, hoje, juntas vamos fazer o pão dos outros no teu forno de lenha e distribuí-lo pela aldeia do Mundo!
A partir desse dia, na aldeia da avozinha Eva, cada família de cada casa, revezadamente, durante os trezentos e sessenta e seis dias do ano, faziam o pão dos outros e distribuíam-no pelo Mundo.


Cristina Correia
Professora Bibliotecária
(texto editado)

sábado, 5 de maio de 2012