sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Identidade Cultural Hoje


Identidade Cultural Hoje


Temos a obrigação de salvar tudo aquilo que ainda é susceptível de ser salvo, para que os nossos netos, embora vivendo num Portugal diferente do nosso, se conservem tão portugueses como nós e capazes de manter as suas raízes culturais mergulhadas na herança social que o passado nos legou. DIAS, Jorge, citado por CABRAL, António (1983), Cancioneiro popular duriense, Centro Cultural de Vila Real, Centro Cultural de Vila Real, SCARL. p. 9
Trás-os-Montes e Douro é um património de excelência, uma paisagem humanizada monumental, uma história singular ligada em grande parte às vicissitudes da viticultura, um ambiente humano, modos de vida, saberes, tradições e relações centradas na terra e no rio. São sobretudo documentos escritos, textos, romances, poesias de escritores, relatos orais, utensílios, objectos, fotografias, pinturas, enfim tradições, usos e costumes, que subjectivam a fronteira da cultura e a identidade desta região. Por exemplo, o sociólogo António Barreto, no seu livro Douro, caracterizou a região e a sua viticultura como um dos mais importantes pólos de modernização da economia e como uma das paisagens responsáveis por este clima excepcional no conjunto do Norte português:
quem viaja no rio, de barco, ou na margem, de comboio, de carro (onde há estrada, o que nem sempre é verdade...) ou simplesmente a pé terá um sentimento estranho: o da falta de população, ou antes, de povoações. É verdade. As cidades, vilas e aldeias fugiram da beira rio. As notáveis excepções são da Régua e o Pinhão, que nasceram ligadas ao comércio do vinho e ao seu transporte fluvial. (...) A verdade é que as povoações e as cidades foram instalar-se nos altos, a 500 m, para fugir aos calores e às dificuldades de comunicações. Vila Real, Lamego, Alijó, Murça, Sabrosa, São João da Pesqueira Vila Nova de Foz Côa e dezenas de aldeias estão construídas em planaltos ou penduradas nas encostas, tão longe quanto possível das cheias, dos calores infernais, das águas estagnadas... A região do Douro é assim, quase inteiramente, a Terra Quente de Trás-os-Montes e Alto Douro, cavada nos planaltos e nas montanhas pelo rio, de que resultou um mundo à parte, um clima diferente e uma vida própria. À volta desta região, uma coroa de montanhas protege-a e marca-lhe as fronteiras. A norte: Montezinho, Lagoaça, Nogueira, Bornes (1200 m), Mogadouro, Reboredo, Candoso, Mairos, Santa Comba, Vilarelho, Falperra (1130 m), São Domingos, Brunheiro, Padrela (1150 m), Alvão (1200 m) e Marão (1400 m). A sul, também de leste para oeste: Marofa, Leomil (1000 m), Piedade, São Domingos de Queimada (1120 m), Nave, Bigorne (1200 m) e Montemuro (1380 m). Foram estas majestades que o rio teve de vencer ardilosamente, pois lhe explorou os pontos fracos, os calcanhares de xisto. Mas são elas que protegem a região de ventos húmidos do Atlântico e dos ventos frios do Norte e de Castela. BARRETO, António (1993), Douro, Lisboa: Edições Inapa S. A, p.37.
Por uma questão de sobrevivência o homem transmontano e duriense dedicou-se à lavoura. Sujeito aos caprichos da natureza que por vezes era adversa, ameaçado pela interioridade, a ligação à terra criou um vínculo cultural, uma força física e anímica, no povo destas regiões. O valor cultural e histórico deste espaço tem sido reconhecido por grandes vultos da literatura e da historiografia regional e nacional: António Barreto, António Cabral, João de Araújo Correia, Aquilino Ribeiro, Camilo de Araújo Correia, Manuel Gonçalves da Costa, Miguel Torga, Horácio Cardoso, entre outros, evocaram nos seus textos e poemas a relação da natureza, o espaço físico e cultural com o trabalho do Homem. Consideraram este espaço um património colectivo e não apenas uma mera indicação geográfica. Imortalizaram este espaço, um contexto rural com uma ligação quase ancestral e transcendente, pelo que a herança da vida, do sacrifício, do trabalho, da festa, da religiosidade, do sentimento, ainda sobrevive nesta cultura comunitária. Reflecte-se nas tradições artesanais, na olaria, na actividade da tecelagem, na pirotecnia transmontana, nas festas e romarias, nas oficinas de socaria, na ferraria, na cerâmica, no cesteiro, no artesão de carro de bois, nas rogas, na sega dos fenos, nas vindimas, na cava das vinhas, nas colheitas, na apanha da azeitona, na tosquia das ovelhas, no folclore, no cancioneiro popular, na doçaria, etc. Todos estes elementos mantêm o orgulho deste povo, constituindo uma referência significativa de um retrato humanizado, sentido, descoberto e actualizado a nível nacional de uma cultura permanente, criadora e viva. Todos estes saberes são transmitidos ao longo de gerações. Artes e técnicas tradicionalmente ligados ao trabalho da terra são elemento identificador do espaço geográfico e cultural de Trás-os-Montes e Douro, juntamente com o legado arqueológico que remonta aos tempos pré-históricos, como troços de vias e ruínas de edificações romanas. O espaço geográfico e cultural é a própria natureza, a relação ancestral prende-se com a actividade agrícola do homem do Douro. Este, por sua vez, não foi indiferente às belezas da natureza que o rodeava. Para fazer o seu vinho, os homens do Douro lutaram entre si e contra os outros. Mas também lutaram contra a natureza, esposaram-na, fundiram-se com ela, com amor e ódio. Das encostas fizeram degraus e escadarias; da rocha, terra e jardins; do calor e da secura, vinho.
Veja-se que, por exemplo, as referências ao Vinho do Porto que chegam até nós datam de longa data, são numerosas e diversificadas, é difícil estabelecer com rigor a data a partir da qual se deu o seu nascimento. Os testemunhos de granitos e de sarmentos e graínhas carbonizadas descobertos em escavações realizadas lá para os lados do Vale de Covelinhas são prova evidente da sua antiguidade. A própria História universal fala da cultura da vinha e da sua expansão aquando da ocupação da Península Ibérica pelos Romanos. Foi no entanto a partir do séc.XII, e fundamentalmente a partir da criação da nacionalidade portuguesa, que a cultura da vinha na região do Douro mais se evidenciou. A prová-lo os numerosos Forais concedidos às Vilas que um pouco por todo o lado iam aparecendo nas margens do rio Douro. Nos séc. XIV, XV e XVI já eram afamados os vinhos “de cheiro” de Lamego e eram considerados os de “mais dura e mais cheirantes” do Reino que eram enviados para a corte de Lisboa e de Castela. Muito mais tarde, na época Pombalina (1756-1776), embora caracterizada por uma legislação autoritária, é criada a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro e lançam-se os alicerces para uma política que muito prestigiou e dignificou o Vinho do Porto, permitindo à região do Douro um novo desenvolvimento. Mais tarde o oídio, a filoxera e o míldio, conjuntamente com a indisciplina, o lucro fácil, a fraude e o descrédito arrasaram, ano após ano, a Região do Douro. A miséria e a fome instalaram-se durante alguns anos nesta região. Nos anos 20 e 30 dá-se uma nova recuperação, define-se as características do Vinho do Porto e precede-se à delimitação da região. Já em 1986 é promulgado o Decreto-Lei que estabelece o Regulamento da Denominação de Origem do Vinho do Porto e as normas gerais para o sector. Região de grandes contradições, enormes assimetrias, vai certamente continuar a ser palco de grandes acontecimentos. Globalmente o Sector do Vinho do Porto representa para a economia nacional um volume de cerca de 40 milhões de contos, aproximadamente. Vd. MAYSON, Richard (2001), O Porto e o Douro, Lisboa: Quetzal Editores.

in À Procura de Uma Identidade Cultural - o trabalho e o lazer no contexto rural do espaço duriense. Cristina Correia