sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Saré Cantá




«(…) Saré Cantá era, no início do século XIX, uma das ilhas cheias de esplendor com uma dezena de léguas de farrobe, pau ferro, amendoim e poilão. Habitam-na pescadores do rio Grande, marinheiros, grumetes, franceses, portugueses e africanos, um arco-íris de povos e cheiros. Os ofícios na agricultura eram sempre penosos, mas esta civilização do trabalho contara com a dimensão essencial da vida humana. Mulheres e homens promoveram o bem comum e aumentaram a herança de toda a família, provocando transformações na natureza e introduzindo alterações profundas na cultura do povo.
Quem por ali viajava de barco, pelos estuários, nos braços do grande delta, pelas margens dos rios, ou a pé, olhava ao longe as choupanas, comungava os sonhos dos anjos e tocava na única luz helénica dos céus. Nesta cultura comunitária sobreviveram os deuses para testemunhar e delegar os reinos celestes. Os homens lutaram entre si e contra os outros. Mas também lutaram contra a natureza, esposaram-na, fundiram-se com ela, com amor e ódio. Da terra arrancaram os produtos, a sobrevivência, o conduto, a solidão, a rudeza. O trabalho era, assim, condição do homem, que através dele contribuía para a obra da Criação. Em Saré Cantá o trabalho constitui uma dádiva, o povo acredita no que diz o chefe da tribo: «com o suor do teu rosto comerás o pão, até que regresses à terra da qual foste tirado».
Era urgente o sacrifício, o ritual e o renascimento.
Escondida na alma da floresta africana, esta histórica terra primitiva ainda vivia sob a protecção do chefe da tribo Cantá. Almamy, o velho sábio, tinha as feições um pouco rudes, a testa franzida e o corpo esguio. Envergava uma tarjeta de pano. À volta do pescoço usava um colar de missangas com três cruzes brancas. Tinha a alma à flor da pele. Opunha-se às injustiças e às doses de hipocrisia dos poderosos que oprimiam e escravizavam outros seres humanos. Como todos os homens da ilha, que no meio do sofrimento do amor choram com os deuses do outro lado do rio Geba, também ele tivera de padecer o mesmo ritual de Saré Cantá, numa esperança cíclica de purificação.
A akasha de Saré Cantá é a maior celebração dos ilhéus ao redor dos deuses. Todos partilham, uns com os outros, o pão da ilha da terra vermelha. Rogam pela chuva sagrada, para que as suas plantações não sequem e os seus peixes não morram. Durante dias, o eleito pedirá perdão por todos e terá que se isolar na ilha, onde só os deuses vivem em pleno na floresta sagrada. Ali, as árvores permanecem eternas. É ali que o infinito reside. Uma celebração que une os povos para comemorar o renascimento de uma nova vida.
Para fertilizar os corações fora escolhido o Abbá. Missionário e portador da esperança, símbolo da origem da paz. Uma nova forma humana começou então a surgir. Com os olhos mirrados, longas barbas e cabelos longos, tinha um aspecto imaculado. Numa resignação pura, o segredo que transportara dentro de si era a de uma missão de amor e fraternidade. Caminhou descalço pelas feitorias, comeu jejum e raízes, enterrou a cólera dos nativos, ofereceu o perdão e a amizade. Envelhecia rapidamente para dar lugar a uma nova vida. A sua semente germinava, vindo a materializar-se em pleno junto ao rio, no outro lado do Geba.
No recinto sagrado das almas, os Iniciados fizeram silêncios e sobre a frondosa vegetação, as chuvas caíram, finalmente.
Durante três dias e três noites, na terra das palavras, plantaram-se folhas de seda. Sete abraços enfeitaram pedaços da terra do céu. Sete liras cantaram melodias junto de Abbá e Almamy.
Por fim, as almas renasceram.
Na madrugada seguinte, o azul e o verde surgem dispersos no horizonte. Renasce o odor da terra. Tudo tinha mudado. (…)» Cristina Correia