sexta-feira, 3 de junho de 2011

Testemunho de Vida: “O Gosto pela Vida”

Já lá vão 35 anos. Parece que foi ontem.
Há momentos na vida em que tudo parece acabar, tudo se desmorona, tudo se desmancha, tudo cai, tudo desaparece num turbilhão imenso, confuso e escuro. De repente e sem que nada o fizesse crer, todos os nossos projectos, todas as nossas fantasias, todos os nossos castelos construídos ou a construir, tudo desapareceu inexoravelmente de forma brutal, cruel e instantânea. Os sonhos, os planos longamente arquitectados para um início de uma vida adulta e organizada, que na prancheta da imaginação se apresentam sempre de forma risonha e apelativa, tudo desapareceu, tudo se escoou, tudo se afundou, devorado por esse tremendo “buraco negro” afunilado e profundo.
Já lá vão 35 anos.
A constatação da dura realidade em que nos encontrámos, a certeza de que o pesadelo era palpável e é real, a consciência da monstruosa injustiça que os deuses permitiram que sobre nós se abatesse, geraram em nós sentimentos de raiva, de dor e de inconformismo que apelaram às nossas mais recônditas reservas de energia e de resistência para conseguirmos emergir de todo este caos. O destino reclamou de nós pesado tributo. Iremos pagá-lo mas iremos igualmente cobrar dividendos. (…)
Não lançámos a toalha ao chão. Não aceitámos a derrota e recusámos a rendição. Por muito poderosas e destruidoras que sejam as forças que sobre nós se abatam, por mais profundas que sejam as marcas e as feridas que provocam e enquanto subsistir a nossa capacidade de pensar e a nossa vontade própria, há sempre coisas que são indestrutíveis e que são as grandes armas que irão permitir vencer a adversidade e lutar contra todas as barreiras: a personalidade, o carácter, a força interior, a criatividade e o poder de iniciativa. Com este arsenal e com o sólido e indispensável apoio dos entes queridos e dos amigos, é e foi possível, recriar todo um novo projecto de vida, voltar a colocar na prancheta novos planos e novos horizontes, voltar a sonhar e voltar a acreditar nas fantasias.
Já lá vão 35 anos.
A luta não é, nem foi fácil. As múltiplas barreiras físicas, culturais e sociais continuam a ser tremendas e por vezes difíceis de ultrapassar. Ao longo desta caminhada, dia após dia, mês após mês, ano após ano, foi necessário subir montanhas e atravessar desfiladeiros. Poucas vezes encontrámos planícies. Foi necessário abrir muitas portas, quase sempre fechadas, forçar a entrada, muitas vezes a pontapé. A novidade e o ineditismo da luta que vimos travando no seio de uma sociedade quase totalmente alheia a estas realidades, trouxe-nos algumas vezes momentos de desalento e de frustração, mas trouxe-nos igualmente, momentos de alegria e sentimentos de vitória, quando conseguimos finalmente abrir as portas ou atravessar os desfiladeiros, mostrando aos outros que todos juntos e cada um com a sua quota parte de participação, é que preenchemos e construímos o puzzle deste imenso universo que é a humanidade e/ou a sociedade ou as micro-sociedades em que estamos inseridos. (…)
É tempo de olhar para trás e sentir a agradável sensação e o prazer de quem cumpriu mais uma etapa na vida. Olhar para baixo, lá do cimo da montanha e ver o sinuoso e difícil traçado que desde a base até aqui nos conduziu, vencendo e ultrapassando inúmeros e aparentemente intransponíveis obstáculos. Olhar com alguma nostalgia para tudo o que aconteceu, para tudo o que foi construído, para tudo o que foi concretizado, quase sempre a partir do zero, como tudo hoje parece tão simples e tão fácil. (…)
As actividades profissionais e culturais, sempre vividas e desenvolvidas, envolvimento e a participação em múltiplas iniciativas e projectos de âmbito social e comunitário, a partilha de conhecimentos experiências com pessoas e instituições, o permanente contacto convívio com os amigos, aquecem-nos o ego e dão-nos a certeza de sermos membros pro-activos da grande aldeia a que pertencemos. Mas há um factor que é, e foi fundamental para que o “boom” que sobreveio ao “buraco negro” acontecesse: o calor humano e o amor da família e dos amigos. Sem o companheirismo, o apoio e o amor sempre presentes, da família dos pais, dos irmãos, da esposa, dos filhos e agora dos netos, as vitória alcançadas não teriam nem o sabor nem o significado que todos lhe atribuímos. Foi por eles e com eles que tudo se realizou.
Faz hoje 35 anos que esta saga começou. António Neves, 2007.


http://www.aclal.org/



Nota Biográfica: António Neves, nascido no ano 1949; Oficial Superior do Exército, Tenente Coronel na situação de reforma extraordinária; Licenciado em Estudos Europeus; Mestre em Gestão de Organizações Desportivas (MEMOS); Actualmente a finalizar a Licenciatura em História; Formação Técnica na Área da Informática; Conselheiro da CP para Clientes com Necessidades Especiais (CNE), desde 2004; Foi dirigente da Federação Portuguesa de Remo e responsável pelo Remo Paralímpico até Março de 2011; Presidente da Federação Portuguesa de Desporto para Deficientes (FPDD) – 2001/06; Responsável pelo Projecto Super Atleta Atenas 2004 e lançamento do Pequim 2008; Presidente da International Blind Sport Association (IBSA-EUROPA) – 2005/06; Membro do Conselho Superior do Desporto de 2003/05; Presidente do Conselho Fiscal da Associação dos Deficientes das Forças Armadas (ADFA) – 1977/79 e de 1993/95; Presidente da Delegação Regional do Sul e Ilhas da Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal (DRSI – ACAPO) – 1998/00; Viveu em Angola, Nova Lisboa e Lobito, desde 1955 até finais de 1975; Como atleta federado praticou Hóquei Patins, como júnior e sénior no Lobito Sport Clube; Iniciou-se no Remo como júnior; A partir de 1977 e já como Deficiente das Forças Armadas, praticou atletismo e ciclismo; Tem como “hobby”, além da informática, leitura e música, o rádio amadorismo (CT1AHF), sendo fundador do Clube de Rádio Amadores de Cascais e Vice-Presidente da ARIES – Asociación de Radioaficionados Invidentes Españoles; É sócio fundador do Jam Session – Clube de Jazz de Cascais; Em parceria com um antigo camarada, Armando Magno, colaborou e foi director do jornal “online” Jornal Passa-Palavra. Sócio Aclal.