Há momentos na vida em que tudo parece acabar, tudo se desmorona, tudo se desmancha, tudo cai, tudo desaparece num turbilhão imenso, confuso e escuro. De repente e sem que nada o fizesse crer, todos os nossos projectos, todas as nossas fantasias, todos os nossos castelos construídos ou a construir, tudo desapareceu inexoravelmente de forma brutal, cruel e instantânea. Os sonhos, os planos longamente arquitectados para um início de uma vida adulta e organizada, que na prancheta da imaginação se apresentam sempre de forma risonha e apelativa, tudo desapareceu, tudo se escoou, tudo se afundou, devorado por esse tremendo “buraco negro” afunilado e profundo.
Já lá vão 35 anos.
A constatação da dura realidade em que nos encontrámos, a certeza de que o pesadelo era palpável e é real, a consciência da monstruosa injustiça que os deuses permitiram que sobre nós se abatesse, geraram em nós sentimentos de raiva, de dor e de inconformismo que apelaram às nossas mais recônditas reservas de energia e de resistência para conseguirmos emergir de todo este caos. O destino reclamou de nós pesado tributo. Iremos pagá-lo mas iremos igualmente cobrar dividendos. (…)
Não lançámos a toalha ao chão. Não aceitámos a derrota e recusámos a rendição. Por muito poderosas e destruidoras que sejam as forças que sobre nós se abatam, por mais profundas que sejam as marcas e as feridas que provocam e enquanto subsistir a nossa capacidade de pensar e a nossa vontade própria, há sempre coisas que são indestrutíveis e que são as grandes armas que irão permitir vencer a adversidade e lutar contra todas as barreiras: a personalidade, o carácter, a força interior, a criatividade e o poder de iniciativa. Com este arsenal e com o sólido e indispensável apoio dos entes queridos e dos amigos, é e foi possível, recriar todo um novo projecto de vida, voltar a colocar na prancheta novos planos e novos horizontes, voltar a sonhar e voltar a acreditar nas fantasias.
Já lá vão 35 anos.
A luta não é, nem foi fácil. As múltiplas barreiras físicas, culturais e sociais continuam a ser tremendas e por vezes difíceis de ultrapassar. Ao longo desta caminhada, dia após dia, mês após mês, ano após ano, foi necessário subir montanhas e atravessar desfiladeiros. Poucas vezes encontrámos planícies. Foi necessário abrir muitas portas, quase sempre fechadas, forçar a entrada, muitas vezes a pontapé. A novidade e o ineditismo da luta que vimos travando no seio de uma sociedade quase totalmente alheia a estas realidades, trouxe-nos algumas vezes momentos de desalento e de frustração, mas trouxe-nos igualmente, momentos de alegria e sentimentos de vitória, quando conseguimos finalmente abrir as portas ou atravessar os desfiladeiros, mostrando aos outros que todos juntos e cada um com a sua quota parte de participação, é que preenchemos e construímos o puzzle deste imenso universo que é a humanidade e/ou a sociedade ou as micro-sociedades em que estamos inseridos. (…)
É tempo de olhar para trás e sentir a agradável sensação e o prazer de quem cumpriu mais uma etapa na vida. Olhar para baixo, lá do cimo da montanha e ver o sinuoso e difícil traçado que desde a base até aqui nos conduziu, vencendo e ultrapassando inúmeros e aparentemente intransponíveis obstáculos. Olhar com alguma nostalgia para tudo o que aconteceu, para tudo o que foi construído, para tudo o que foi concretizado, quase sempre a partir do zero, como tudo hoje parece tão simples e tão fácil. (…)
As actividades profissionais e culturais, sempre vividas e desenvolvidas, envolvimento e a participação em múltiplas iniciativas e projectos de âmbito social e comunitário, a partilha de conhecimentos experiências com pessoas e instituições, o permanente contacto convívio com os amigos, aquecem-nos o ego e dão-nos a certeza de sermos membros pro-activos da grande aldeia a que pertencemos. Mas há um factor que é, e foi fundamental para que o “boom” que sobreveio ao “buraco negro” acontecesse: o calor humano e o amor da família e dos amigos. Sem o companheirismo, o apoio e o amor sempre presentes, da família dos pais, dos irmãos, da esposa, dos filhos e agora dos netos, as vitória alcançadas não teriam nem o sabor nem o significado que todos lhe atribuímos. Foi por eles e com eles que tudo se realizou.
Faz hoje 35 anos que esta saga começou. António Neves, 2007.
Nota Biográfica: António Neves, nascido no ano 1949; Oficial Superior do Exército, Tenente Coronel na situação de reforma extraordinária; Licenciado em Estudos Europeus; Mestre em Gestão de Organizações Desportivas (MEMOS); Actualmente a finalizar a Licenciatura em História; Formação Técnica na Área da Informática; Conselheiro da CP para Clientes com Necessidades Especiais (CNE), desde 2004; Foi dirigente da Federação Portuguesa de Remo e responsável pelo Remo Paralímpico até Março de 2011; Presidente da Federação Portuguesa de Desporto para Deficientes (FPDD) – 2001/06; Responsável pelo Projecto Super Atleta Atenas 2004 e lançamento do Pequim 2008; Presidente da International Blind Sport Association (IBSA-EUROPA) – 2005/06; Membro do Conselho Superior do Desporto de 2003/05; Presidente do Conselho Fiscal da Associação dos Deficientes das Forças Armadas (ADFA) – 1977/79 e de 1993/95; Presidente da Delegação Regional do Sul e Ilhas da Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal (DRSI – ACAPO) – 1998/00; Viveu em Angola, Nova Lisboa e Lobito, desde 1955 até finais de 1975; Como atleta federado praticou Hóquei Patins, como júnior e sénior no Lobito Sport Clube; Iniciou-se no Remo como júnior; A partir de 1977 e já como Deficiente das Forças Armadas, praticou atletismo e ciclismo; Tem como “hobby”, além da informática, leitura e música, o rádio amadorismo (CT1AHF), sendo fundador do Clube de Rádio Amadores de Cascais e Vice-Presidente da ARIES – Asociación de Radioaficionados Invidentes Españoles; É sócio fundador do Jam Session – Clube de Jazz de Cascais; Em parceria com um antigo camarada, Armando Magno, colaborou e foi director do jornal “online” Jornal Passa-Palavra. Sócio Aclal.