sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

um dia


Palavras adormecidas e outras vozes...



- Truz-truz!
- Entrai. Sede bem-vindos.
Iniciada a viagem, diante de nós a memória é o caminho do indefinido, dum mundo de imprevisto, diálogo incessante da dinâmica da Vida, simbiose entre o futuro, o presente e o passado.
Com todos os que dão magia e sonho à palavra escrita, comungamos.
É com encantamento que, nestes encontros, o pensamento perscruta a dimensão criativa, esta riqueza humana desperta de conhecimento.
Celebra-se a peregrinação das palavras adormecidas.
Continuaremos, essencialmente, na busca da essência do tempo, vivenciando em pleno fontes de alegria da profundidade do Ser.
Ali, no cimo do monte, parados no interior do automóvel, a uma escassa meia dúzia de quilómetros depara-se-nos a aldeia que se estende por vastos terrenos constituídos por vales e várzeas.
Abrigada pela privilegiada beleza da Serra, uma graciosa terra transmontana de gente notável e provida de talento se avista.
Ventanias de aromas povoam as casas de pedra da aldeia do mundo. Um caleidoscópio de manifestações de regionalismo pleno atinge a constelação de todos ao som de instrumentos musicais tradicionais, guitarra portuguesa, bandolim, audição de música clássica e salmos.
Chamavam-lhe aldeia do trabalho. Vales e pedras cobriam os seus terrenos de lavradio e recantos, que homens foram talhando ao longo dos séculos. A quinta, abundante de tudo, renascia todos os anos cansada de trabalhos corpulentos. A mina permanecia firme e a água, fonte da vida da aldeia, continuava a correr límpida e fresca.
Aquele solo era amado por Deus, como um filho.
O simbolismo dos Anjos esculpidos em pedra pelas mãos de mulheres e homens, reunidos no alpendre da capela, junto da mãe-torre, perpetuam no céu a mensagem de Aleluia das vozes do campo, do vale, da montanha e dos sonhos das crianças.
Descendo a encosta pela estrada macadame, dirigimo-nos à aldeia de infância de Francisco. Olhamos os lameiros, os trabalhos de terraplenagem iniciados nos lugares das Almoínhas, nos Casarelhos e na Corriça. O começo da instalação de bocas de rega para os novos pomares já se avizinha.
Junto ao casarão o quintal estava a ser tratado pelo primo António, mais velho cinco anos, que ficara a viver na aldeia, enquanto Francisco decidira ingressar na vida militar, fazendo algumas comissões no Ultramar, com regresso definitivo à Metrópole nos anos sessenta.
Dirigimo-nos ao pátio secular, de uma beleza incomparável, onde os amores-perfeitos, a trepadeira de lilases e as rosas despontavam luzes, cores e odores celestes todas as madrugadas. As sombras, os canteiros e os bancos arrumados despertavam os convidados a sentirem a auréola, procurando num desabrochar duma planta a mais pura e incognoscível manifestação da natureza.
Os arbustos, verdadeiros arautos da essência do porvir, cresciam junto às largas escadas, por onde Francisco subira para entrar em casa.
Entre velhos manuscritos caligrafados em folhas de papel velino e uma vela de candeia, Francisco vai enxergando os vultos das letras e os desenhos assimétricos que sua mãe Amália lhe deixara. As folhas já soltas, envolvidas por um xaile, no interior da arca, vêm reconstituir um lugar no tempo da sua íntima emoção. A toalha branca do Domingo de Ramos, o âmbar e a cidreira repousavam junto das cartas de sua mãe.
Sozinho, no quarto de seus pais, vai examinando as estampas, as escassas fotografias e os catálogos amontoados nos móveis da casa de pedra.
A trovoada fulgurante prolongava-se pela madrugada e os clarões rasgavam silhuetas nos muros da sua memória.
Quando a saudade toldava o coração, no sentimento de Francisco penetravam as mais diversas palavras agridoces, paisagens e vozes vivificantes.
Recorda as imagens de seu pai, homem de cérebro arrojado que procurou no próprio conhecimento, o entendimento, a vida, o seu sentido e o seu valor, sentado na eira, nas noites de Verão, balbuciando episódios do quotidiano.
A recitação de poesia partilhada pelo encontro de gentes da terra, de outros lugares e sentimentos, envolvia-os em viagens nómadas, inéditas, singulares, de imagens telúricas e saborosas.
Ficamos dias, sem pressa.
Demoramo-nos nos diálogos férteis de inteireza humana.
Revisitamos os compartimentos, os olhares profundos e os rostos familiares. Ali, naquele lugar, as vozes vinham ao encontro de todos.
Entre dois nacos de boroa, um caldo feijão e um bolo de cenoura, acende-se o fogo quente no rés-do-chão, que depois há-de servir para aquecer as longas horas dos serões.
A grande mesa rectangular estendia-se pela sala rústica, onde todos se reuniam para dividir o conduto e o trabalho. Cenário de diversos instrumentos espirituais, religião, superstição, ciência e filosofia, nela cabiam todos. Irmãos, primos, tios, pais e avós de Francisco, ali, edificavam projectos, venciam rotinas do trabalho braçal, diziam histórias, falavam dos estudos e da escola na aldeia vizinha, tocavam músicas da Banda Filarmónica, contavam a jorna e rebuscavam sonhos longínquos de novos céus. Eram deleitosos os convívios, profícuos em trabalho e em humanidade.
Já o céu estava povoado de silêncios, quando nos recolhemos na oração, de joelhos junto ao oratório, num momento de resignação.
Por fim, reinventamos as palavras adormecidas e outras vozes. Vozes dos anjos, vozes de pedra, vozes de estrelas, guardiãs da nossa própria consciência.    Cristina Correia,  in "Leituras D'Ouro" 2010.

junto às árvores


Sei que a voz do olhar tem silêncios
e o mutismo domina o tempo
nas teias dos espelhos minguados.
Se soubessem quanto espreitamos
a memória dos silêncios
entre o genuíno e a perplexidade da consciência
jamais exerceriam actos disformes.
Junto à memória o conhecimento
imbuído em palavras verdade,
como é frágil o Ser,
e tão lúcido o pensamento.
A generosidade das árvores
não tem fim,
sei que as agarro
durante as minhas horas de existência
porque, essas sim,
são verdade,
espaços contíguos
das minhas rugas, que me concedem
caminhos de firmeza
e, me enchem de claridade.
Restou tanto por dizer
um vestígio de um olhar,
um refúgio no tempo.
Entre as metamorfoses a liberdade é caminho
para ler a voz do olhar e dos silêncios.
Ficarei para sempre no tempo incerto
dos silêncios,
junto às árvores.
Cristina Correia

"Que fique só um monumento de palavras"



 
"Que fique só um monumento de palavras"


.porque o meu ser____ sustido pela vida e pela morte_________arquiva as palavras_ não somente dos poetas____mas dos seres___terrestres____dos pássaros____dos gatos_____do mar________dos rostos________dos sofrimentos____da guerra________da esperança_______do espelho do olhar_______das almas. .porque o tempo em que vivo___morre_____num porto de África____junto ao Geba_____onde nasceu. .porque se o tempo albergar______________como um rio___onde tudo flui_____ as quimeras_______dos humanos____Ah_então___________não haveria tempo ___para tantos séculos de história__________nem espaço para os tomos de ciências ancestrais. os rios também secam________e nem a cinza___nem o fumo___tinham os contos de Torga para narrar____..que do nada ao menos fique________ minha razão de viver________meu filho____ventre rasgado______para teu viver______meu monumento de palavras.
.porque do trabalho acordo-me_________ser aprisionado___________abre-se um lugar________no silêncio do poente dos dias_________e aos poetas só se pedem palavras____e_____silêncios__________________________________.
.porque somos assim________ numa guerra assimétrica___a doer_______a erradicar famílias_________somos assim humanos______de Deus. que fique só_____ um monumento de palavras____sem dor__sem mágoas. .porque o meu ser____ sustido pela vida e pela morte____arquiva sofrimentos____da guerra________da esperança_______do espelho do olhar_______das almas. 

Cristina Correia

Etiquetas: Escrita Criativa

Saré Cantá




«(…) Saré Cantá era, no início do século XIX, uma das ilhas cheias de esplendor com uma dezena de léguas de farrobe, pau ferro, amendoim e poilão. Habitam-na pescadores do rio Grande, marinheiros, grumetes, franceses, portugueses e africanos, um arco-íris de povos e cheiros. Os ofícios na agricultura eram sempre penosos, mas esta civilização do trabalho contara com a dimensão essencial da vida humana. Mulheres e homens promoveram o bem comum e aumentaram a herança de toda a família, provocando transformações na natureza e introduzindo alterações profundas na cultura do povo.
Quem por ali viajava de barco, pelos estuários, nos braços do grande delta, pelas margens dos rios, ou a pé, olhava ao longe as choupanas, comungava os sonhos dos anjos e tocava na única luz helénica dos céus. Nesta cultura comunitária sobreviveram os deuses para testemunhar e delegar os reinos celestes. Os homens lutaram entre si e contra os outros. Mas também lutaram contra a natureza, esposaram-na, fundiram-se com ela, com amor e ódio. Da terra arrancaram os produtos, a sobrevivência, o conduto, a solidão, a rudeza. O trabalho era, assim, condição do homem, que através dele contribuía para a obra da Criação. Em Saré Cantá o trabalho constitui uma dádiva, o povo acredita no que diz o chefe da tribo: «com o suor do teu rosto comerás o pão, até que regresses à terra da qual foste tirado».
Era urgente o sacrifício, o ritual e o renascimento.
Escondida na alma da floresta africana, esta histórica terra primitiva ainda vivia sob a protecção do chefe da tribo Cantá. Almamy, o velho sábio, tinha as feições um pouco rudes, a testa franzida e o corpo esguio. Envergava uma tarjeta de pano. À volta do pescoço usava um colar de missangas com três cruzes brancas. Tinha a alma à flor da pele. Opunha-se às injustiças e às doses de hipocrisia dos poderosos que oprimiam e escravizavam outros seres humanos. Como todos os homens da ilha, que no meio do sofrimento do amor choram com os deuses do outro lado do rio Geba, também ele tivera de padecer o mesmo ritual de Saré Cantá, numa esperança cíclica de purificação.
A akasha de Saré Cantá é a maior celebração dos ilhéus ao redor dos deuses. Todos partilham, uns com os outros, o pão da ilha da terra vermelha. Rogam pela chuva sagrada, para que as suas plantações não sequem e os seus peixes não morram. Durante dias, o eleito pedirá perdão por todos e terá que se isolar na ilha, onde só os deuses vivem em pleno na floresta sagrada. Ali, as árvores permanecem eternas. É ali que o infinito reside. Uma celebração que une os povos para comemorar o renascimento de uma nova vida.
Para fertilizar os corações fora escolhido o Abbá. Missionário e portador da esperança, símbolo da origem da paz. Uma nova forma humana começou então a surgir. Com os olhos mirrados, longas barbas e cabelos longos, tinha um aspecto imaculado. Numa resignação pura, o segredo que transportara dentro de si era a de uma missão de amor e fraternidade. Caminhou descalço pelas feitorias, comeu jejum e raízes, enterrou a cólera dos nativos, ofereceu o perdão e a amizade. Envelhecia rapidamente para dar lugar a uma nova vida. A sua semente germinava, vindo a materializar-se em pleno junto ao rio, no outro lado do Geba.
No recinto sagrado das almas, os Iniciados fizeram silêncios e sobre a frondosa vegetação, as chuvas caíram, finalmente.
Durante três dias e três noites, na terra das palavras, plantaram-se folhas de seda. Sete abraços enfeitaram pedaços da terra do céu. Sete liras cantaram melodias junto de Abbá e Almamy.
Por fim, as almas renasceram.
Na madrugada seguinte, o azul e o verde surgem dispersos no horizonte. Renasce o odor da terra. Tudo tinha mudado. (…)» Cristina Correia

carta a um amigo




carta a um amigo:
«...porque o meu ser____ sustido pela vida e pela morte_________arquiva as palavras_ não somente dos poetas____mas dos seres___terrestres____dos pássaros____dos gatos_____do mar________dos rostos________dos sofrimentos____da guerra________da esperança_______do espelho do olhar_______das almas. .porque o tempo em que vivo___morre_____num porto de África____junto ao Geba_____onde nasceu. .porque se o tempo albergar______________como um rio___onde tudo flui_____ as quimeras_______dos humanos____Ah_então___________não haveria tempo ___para tantos séculos de história__________nem espaço para os tomos de ciências ancestrais. os rios também secam________e nem a cinza___nem o fumo___tinham os contos de Torga para narrar____..que do nada ao menos fique________ minha razão de viver________meu filho____ventre rasgado______para teu viver______meu monumento de palavras.
.porque do trabalho acordo-me_________ser aprisionado___________
abre-se um lugar________no silêncio do poente dos dias_________e aos poetas só se pedem palavras____e_____silêncios__________________________________.
.porque somos assim________ numa guerra assimétrica___a doer_______a erradicar famílias_________somos assim humanos______de Deus. que fique só_____ um monumento de palavras____sem dor__sem mágoas. .porque o meu ser____ sustido pela vida e pela morte____arquiva sofrimentos____da guerra________da esperança_______do espelho do olhar_______das almas...» in cerne e o verso II, Cristina Correia

Identidade Cultural Hoje


Identidade Cultural Hoje


Temos a obrigação de salvar tudo aquilo que ainda é susceptível de ser salvo, para que os nossos netos, embora vivendo num Portugal diferente do nosso, se conservem tão portugueses como nós e capazes de manter as suas raízes culturais mergulhadas na herança social que o passado nos legou. DIAS, Jorge, citado por CABRAL, António (1983), Cancioneiro popular duriense, Centro Cultural de Vila Real, Centro Cultural de Vila Real, SCARL. p. 9
Trás-os-Montes e Douro é um património de excelência, uma paisagem humanizada monumental, uma história singular ligada em grande parte às vicissitudes da viticultura, um ambiente humano, modos de vida, saberes, tradições e relações centradas na terra e no rio. São sobretudo documentos escritos, textos, romances, poesias de escritores, relatos orais, utensílios, objectos, fotografias, pinturas, enfim tradições, usos e costumes, que subjectivam a fronteira da cultura e a identidade desta região. Por exemplo, o sociólogo António Barreto, no seu livro Douro, caracterizou a região e a sua viticultura como um dos mais importantes pólos de modernização da economia e como uma das paisagens responsáveis por este clima excepcional no conjunto do Norte português:
quem viaja no rio, de barco, ou na margem, de comboio, de carro (onde há estrada, o que nem sempre é verdade...) ou simplesmente a pé terá um sentimento estranho: o da falta de população, ou antes, de povoações. É verdade. As cidades, vilas e aldeias fugiram da beira rio. As notáveis excepções são da Régua e o Pinhão, que nasceram ligadas ao comércio do vinho e ao seu transporte fluvial. (...) A verdade é que as povoações e as cidades foram instalar-se nos altos, a 500 m, para fugir aos calores e às dificuldades de comunicações. Vila Real, Lamego, Alijó, Murça, Sabrosa, São João da Pesqueira Vila Nova de Foz Côa e dezenas de aldeias estão construídas em planaltos ou penduradas nas encostas, tão longe quanto possível das cheias, dos calores infernais, das águas estagnadas... A região do Douro é assim, quase inteiramente, a Terra Quente de Trás-os-Montes e Alto Douro, cavada nos planaltos e nas montanhas pelo rio, de que resultou um mundo à parte, um clima diferente e uma vida própria. À volta desta região, uma coroa de montanhas protege-a e marca-lhe as fronteiras. A norte: Montezinho, Lagoaça, Nogueira, Bornes (1200 m), Mogadouro, Reboredo, Candoso, Mairos, Santa Comba, Vilarelho, Falperra (1130 m), São Domingos, Brunheiro, Padrela (1150 m), Alvão (1200 m) e Marão (1400 m). A sul, também de leste para oeste: Marofa, Leomil (1000 m), Piedade, São Domingos de Queimada (1120 m), Nave, Bigorne (1200 m) e Montemuro (1380 m). Foram estas majestades que o rio teve de vencer ardilosamente, pois lhe explorou os pontos fracos, os calcanhares de xisto. Mas são elas que protegem a região de ventos húmidos do Atlântico e dos ventos frios do Norte e de Castela. BARRETO, António (1993), Douro, Lisboa: Edições Inapa S. A, p.37.
Por uma questão de sobrevivência o homem transmontano e duriense dedicou-se à lavoura. Sujeito aos caprichos da natureza que por vezes era adversa, ameaçado pela interioridade, a ligação à terra criou um vínculo cultural, uma força física e anímica, no povo destas regiões. O valor cultural e histórico deste espaço tem sido reconhecido por grandes vultos da literatura e da historiografia regional e nacional: António Barreto, António Cabral, João de Araújo Correia, Aquilino Ribeiro, Camilo de Araújo Correia, Manuel Gonçalves da Costa, Miguel Torga, Horácio Cardoso, entre outros, evocaram nos seus textos e poemas a relação da natureza, o espaço físico e cultural com o trabalho do Homem. Consideraram este espaço um património colectivo e não apenas uma mera indicação geográfica. Imortalizaram este espaço, um contexto rural com uma ligação quase ancestral e transcendente, pelo que a herança da vida, do sacrifício, do trabalho, da festa, da religiosidade, do sentimento, ainda sobrevive nesta cultura comunitária. Reflecte-se nas tradições artesanais, na olaria, na actividade da tecelagem, na pirotecnia transmontana, nas festas e romarias, nas oficinas de socaria, na ferraria, na cerâmica, no cesteiro, no artesão de carro de bois, nas rogas, na sega dos fenos, nas vindimas, na cava das vinhas, nas colheitas, na apanha da azeitona, na tosquia das ovelhas, no folclore, no cancioneiro popular, na doçaria, etc. Todos estes elementos mantêm o orgulho deste povo, constituindo uma referência significativa de um retrato humanizado, sentido, descoberto e actualizado a nível nacional de uma cultura permanente, criadora e viva. Todos estes saberes são transmitidos ao longo de gerações. Artes e técnicas tradicionalmente ligados ao trabalho da terra são elemento identificador do espaço geográfico e cultural de Trás-os-Montes e Douro, juntamente com o legado arqueológico que remonta aos tempos pré-históricos, como troços de vias e ruínas de edificações romanas. O espaço geográfico e cultural é a própria natureza, a relação ancestral prende-se com a actividade agrícola do homem do Douro. Este, por sua vez, não foi indiferente às belezas da natureza que o rodeava. Para fazer o seu vinho, os homens do Douro lutaram entre si e contra os outros. Mas também lutaram contra a natureza, esposaram-na, fundiram-se com ela, com amor e ódio. Das encostas fizeram degraus e escadarias; da rocha, terra e jardins; do calor e da secura, vinho.
Veja-se que, por exemplo, as referências ao Vinho do Porto que chegam até nós datam de longa data, são numerosas e diversificadas, é difícil estabelecer com rigor a data a partir da qual se deu o seu nascimento. Os testemunhos de granitos e de sarmentos e graínhas carbonizadas descobertos em escavações realizadas lá para os lados do Vale de Covelinhas são prova evidente da sua antiguidade. A própria História universal fala da cultura da vinha e da sua expansão aquando da ocupação da Península Ibérica pelos Romanos. Foi no entanto a partir do séc.XII, e fundamentalmente a partir da criação da nacionalidade portuguesa, que a cultura da vinha na região do Douro mais se evidenciou. A prová-lo os numerosos Forais concedidos às Vilas que um pouco por todo o lado iam aparecendo nas margens do rio Douro. Nos séc. XIV, XV e XVI já eram afamados os vinhos “de cheiro” de Lamego e eram considerados os de “mais dura e mais cheirantes” do Reino que eram enviados para a corte de Lisboa e de Castela. Muito mais tarde, na época Pombalina (1756-1776), embora caracterizada por uma legislação autoritária, é criada a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro e lançam-se os alicerces para uma política que muito prestigiou e dignificou o Vinho do Porto, permitindo à região do Douro um novo desenvolvimento. Mais tarde o oídio, a filoxera e o míldio, conjuntamente com a indisciplina, o lucro fácil, a fraude e o descrédito arrasaram, ano após ano, a Região do Douro. A miséria e a fome instalaram-se durante alguns anos nesta região. Nos anos 20 e 30 dá-se uma nova recuperação, define-se as características do Vinho do Porto e precede-se à delimitação da região. Já em 1986 é promulgado o Decreto-Lei que estabelece o Regulamento da Denominação de Origem do Vinho do Porto e as normas gerais para o sector. Região de grandes contradições, enormes assimetrias, vai certamente continuar a ser palco de grandes acontecimentos. Globalmente o Sector do Vinho do Porto representa para a economia nacional um volume de cerca de 40 milhões de contos, aproximadamente. Vd. MAYSON, Richard (2001), O Porto e o Douro, Lisboa: Quetzal Editores.

in À Procura de Uma Identidade Cultural - o trabalho e o lazer no contexto rural do espaço duriense. Cristina Correia

diz-me, poeta amigo...


Cerne e o verso / Cristina Correia
AUTOR(ES): 
Correia, Cristina
PUBLICAÇÃO: 
[S.l. : s.n.], 2000 ( Lamego : -- Tipografia voz de Lamego)
DESCR. FÍSICA: 
64, [4] p. : il. ; 21 cm
DEP. LEGAL: 
PT -- 150874/00
CDU: 
821.134.3-1"19"

diz-me, poeta amigo__em que porto brotam os caminhos do pensamento-verdade, da luz, da liberdade...…porque o meu ser sustido pela vida e pela morte arquiva as palavras não somente dos poetas mas dos seres terrestres dos pássaros dos gatos do mar dos rostos dos sofrimentos da guerra da esperança do espelho do olhar das almas__________diz-me, poeta amigo o rio há-de trazer os recados de Deus_____o mar segredará os mistérios de ser e ser-se…porque o tempo em que vivo morre num porto de África junto ao Geba onde nasceu …porque se o tempo albergar como um rio onde tudo flui as quimeras dos humanos_______Ah… então não haveria tempo para tantos séculos de história nem espaço para os tomos de ciências ancestrais______ diz-me, poeta amigo o abraço de Deus é luz, flor lilaz, trepadeira selvagem, vales e montes, árvores de ninho, nossos filhos, o dom da ubiquidade, fontes de hiatos vazios... …que do nada ao menos fique minha razão de viver meu filho ventre rasgado para teu viver meu monumento de palavras...porque do trabalho acordo-me ser aprisionado abre-se um lugar no silêncio do poente dos dias__ e aos poetas só se pedem palavras e silêncios...___porque somos assim numa guerra assimétrica a doer a erradicar famílias somos assim humanos de Deus…que fique só um monumento de palavras sem dor sem mágoas. …porque o meu ser sustido pela vida e pela morte arquiva sofrimentos da guerra da esperança do espelho do olhar das almas.______ digo-te, poeta amigo o abraço de Deus é um poeta amigo, também. Cristina Correia

Silencioso diálogo...
É tempo de espera
ou
apenas
estranho tempo em mim se esgota,
os linhos, os frutos, a memória.
Encontro pinturas animistas
a povoar o cântico das palavras.
Os meus passos peregrinos caminham
com amor
até à eternidade.
in Cerne e o Verso, Cristina Correia.

Um rio, um fio de memória…


Antologia de textos durienses - Tomo II ISBN: 972-99089-7-4 Autor: Vários II Cristina Correia [et al.] Ano de edição: 2004 Editora: Garça Editores - Edições, Marketing e Publicidade, Lda


Um rio, um fio de memória…
Trinta e sete anos haviam decorrido desde o ano de 1869, em que Chardron projectara, no Porto, um majestoso espaço, dedicando-o ao seu rei - o Douro. (...)
Das janelas da galeria, o velho sábio conseguia ver as pontes D. Maria e D. Luís sobre o rio. Como sempre, Chardron recordava tudo o que ainda podia conter na sua memória - os afectos. A água, o bálsamo da saudade e o divino rio. Os rochedos, a verdura, os marcos de granito, as cepas, as pipas de vinho enfeitadas de louro, os barcos rabelos. A beleza inigualável das paisagens, o fruto doce e doirado dos vinhedos, a cor ametista do vinho, a gastronomia, o pão de sêmea, o vinho de Tormes, a alegria franca e a hospitalidade dos homens de Barqueiros. As festas, as rogas, a sega dos fenos, o cancioneiro. As pequenas flores pálidas e a sua velha amiga, agora fragilizada, Marguerite. Uma alma simples de simpática aparência. Padecia de uma doença respiratória e debilitava-se ano após ano. As suas palavras serenavam-no, via-a como uma mãe, com candura. (...)
No período de férias passeavam juntos. Escolhiam percursos históricos. Apreciavam a caminhada desde a Porta do Sol até à Porta da Vila, observando minuciosamente as ruínas, o escasso casario e uma réstia do plantio de amoreiras que por entre aquelas vielas do Castelo de Lamego renasciam. Procuravam a frescura das águas, a vegetação, os ciprestes junto à casa da Quinta, no Tua. Os miradouros, os recantos arqueológicos, os vinhedos encorpados por uma gestação generosa. Gostavam de vestir os trajes típicos do Douro. Este tempo habilitava-os a um novo crescimento interior, numa simbiose entre a terra e o homem.(...)
Quando se encontravam, durante o ano, Marguerite cultora das ciências históricas ajudava-o a traduzir os velhos manuscritos caligrafados em papel velino. Organizavam tertúlias e nelas dialogavam com paixão sobre as bases culturais de uma nação, invocando de uma forma concisa as suas ideologias em relação ao perigo do feudalismo industrial, onde os valores da humanidade são subestimados. Neste contexto apelavam para o perigo do aparecimento da ambição e da inveja, vírus das futuras sociedades. Conversavam sobre a conservação dos arquivos de alguns periódicos que foram publicados em 1869: o Diário do Povo, a Revista Crítica de Literatura Moderna; a Voz do Douro e a Gazeta Democrática, esta em 1870, entre outros semanários portuenses. (…) Cristina Correia.
in Vozes do Douro Antologia de textos durienses - Tomo II, 2004.

testamento





testamento
Num prado minhas cinzas em repouso sorverão as sementes das rosas imanadas pelas águas do tempo
dos silêncios
ficarei para sempre no momento incerto do eterno, no chão da terra das árvores do mundo
permanecerei nas sílabas escritas pelas águas da chuva, que só eu me escuto no silêncio das palavras adormecidas
basta-me o silêncio e o encontro do novo dia com as sementes e com as águas e o caule e as folhas e as rosas a germinarem no chão da terra do prado em repouso no alvorecer de mais um dia
sinto espanto, sobra-me a lembrança e a memória revisitada dos vultos assimétricos da vida num qualquer lugar dos anjos e exalo a saudade do olhar dos rostos amigos
guardo um musgo numa raiz diluída em oração e no meu incauto sinto a seiva da humanidade onde se
oculta o tempo dos sossegos, porque a alma, essa, remida, só os deuses a tocam
e a cada batimento da terra só o silêncio me habitará e oiço apenas a memória e viajo junto de vós
concilio-me com a natureza e ao monólogo de uma Ave Maria, visito-vos sempre em hiatos vazios e no silêncio do poente dos dias
porque o tempo em que vivo permanecerá nas sílabas escritas pelas águas da chuva num prado em
repouso
e em ti permanecerei, e deixa que a vida me diga de ti
o trabalho a coragem a confiança a serenidade o futuro o presente a esperança, sempre
que fique só um monumento de cinzas de paz a albergar o olhar das almas e no enleio do fio dos dias um abraço de Deus.  in testamento, Cristina Correia.

Somos nós a viagem e o tempo...


Manuela Correia Brito
Somos nós a viagem e o tempo...

aos poetas só se pedem palavras e silêncios porque o tempo em que vivo arquiva sofrimentos da guerra da esperança do espelho do olhar das almas
no chão silenciado, as vozes vêm ao meu encontro e o céu povoado de sossegos depurados de rendição derrama vocábulos que posso revisitar
no encontro com o chão, harmonizo a sílaba da saudade do olhar do gesto, do sonho sublimado e  da memória do peito rasgado de dor a descrever a morte.
no meu incauto a fertilizar o espírito concilio-me com a natureza nas colheitas do silêncio
encontro as palavras adormecidas no livro em chão emudecido pelas águas junto às árvores e reinvento o tempo incerto das minhas rugas que me enchem de claridade
as sílabas espalhadas no meu leito irmanam com as árvores do mundo, chão fertilizante para a terra do espírito que fermenta quietude
e num canto de mim guardo um musgo, não de trevas mas de luz e no enleio do fio dos dias um abraço de Deus.
a descrever o sentido da palavra a flamejar como um círio ficarei para sempre no tempo incerto e no
burilar da minha solidão escrevo na água, memória do sempre, retalhos rendilhados de esperança.
sou raiz a visitar os sonhos, somos nós a viagem e o tempo.  in testamento, Cristina Correia.